terça-feira, 28 de junho de 2011

Viajandão – mas com tanta sociologia que... (1)

Por Eugênio Bucci

Já faz bem uns trinta anos, fiz a minha cabeça (2): o pessoal cabeça feita (3), quando dava uma bola (4), se comunicava por monossílabos. Para melhor exprimir e melhor conviver com aquela descoberta poética, escrevi um soneto. Também há trinta anos (5). O soneto reproduzia um diálogo entre um bicho grilo (6) e seu “fornecedor”:

– Tem?
– Só...
– Pó?
– Nem...

Ó,
bem:
sem
dó.

– Chá?
– Um pau.

– Dá
Um.
– Tchau.

Agora preciso fazer mais notas de rodapé (7):

Aquele é um tempo que vai longe. Os Mutantes cantavam “dizem que sou louco”, e louco era um sinônimo de “cabeça feita”. Em algumas comunidades lingüísticas, louco era – e parece que ainda é – um signo positivo. Para os caretas (8), no entanto, ser louco era uma doença. Alguns pais, alucinados em sua caretice, internavam os filhos que fumavam maconha em hospícios (9). Os Mutantes continuavam cantando: “Mais louco é quem me diz que não é feliz”. Mas eles, mutantes, também não eram felizes. Eram apenas loucos. Os Rolling Stones, em “Satisfaction”, cantavam quase o contrário: “não posso encontrar prazer” etc. E Raul Seixas era mais conciliador, em “Maluco beleza”: “Controlando a minha maluquez, misturada com minha lucidez” etc.

Naquele tempo, nos pastos de Orlândia, que se situava a sete quilômetros de Sales Oliveira, tinha uma turma de adolescentes que colhia cogumelos depois da chuva, cogumelos que nasciam em cocô de vaca, faziam um chá pesado, bebiam, e depois ficavam horas e horas conversando com árvores. Uma figueira de certa idade, na margem direita do Rio Pardo, aí já mais para as bandas de Morro Agudo, parece que era muito falante. Ela, pelo menos ela, não se expressava por monossílabos – mas eu mesmo nunca ouvi de seu tronco uma única palavra.

Outros compravam éter e clorofórmio na farmácia, que vendiam essas substâncias sem a menor restrição, e misturavam. Era o lança-perfume orgânico. A poção derretia a tampa do frasco, tampa feita de plástico, mas era aspirada, com devoção, com sofreguidão. Só quando era Carnaval, lógico. Vem cá-á-á-á, Dadá-á-á-á (10).

Aquele tempo, prezada leitora, acabou. Passou. Morreu.

Mas um pouco do efeito ficou. Hoje, se alguém pergunta o que é maconha, outro alguém responde: é uma coisa aí que todo mundo já fumou. Até Fernando Henrique Cardoso (11). Bill Clinton (12) também, mas não tragou. Eu, modestamente, fiquei assim pensando nisso enquanto via o filme Quebrando tabu (13), do qual Fernando Henrique Cardoso é apresentador, repórter, comentarista, âncora e inspirador. Digam o que quiserem: eu, de minha parte, adorei (14).

Adorei porque ele consegue – finalmente alguém consegue – apresentar para o grande público uma reportagem profunda sobre drogas que retira o tema do campo do crime comum. Retira o tema do moralismo. A experiência cultural com as drogas, enfim, sai do confinamento. FHC enfrenta o risco de ser atacado como se fosse um Raul Seixas de gravata, como se estivesse fazendo a apologia do dopping, e expõe abertamente os estragos causados pela política internacional – liderada pelos Estados Unidos – de guerra às drogas. Bill Clinton aparece dizendo que errou ao não mudar essa política. Fernando Henrique Cardoso também diz que, quando presidente, errou. Deveria ter interrompido a repressão ao uso, substituindo a polícia por assistência médica aos dependentes. Usuário não é criminoso, ele insiste. Na pior das hipóteses, é apenas alguém que virou dependente e, por isso, está doente. Faz até uma piada: depois que ele empunhou a bandeira pela descriminalização do uso da maconha, o pessoal diz que o princípio ativo da cannabis não é mais THC, mas é FHC.

Gostei mesmo de ver o filme. Ele me ajudou a libertar minhas próprias lembranças da memória clandestina em que tinham se refugiado. Não sou a favor do uso de drogas, de modo algum. A própria maconha, coitada, faz muito mais mal do que normalmente se diz. É mais nociva do que o próprio filme dá a entender. Eu vi – como muitos da minha geração – vi gente que se quebrou nessa brincadeira. Gente que nunca se recuperou inteiramente. Não recomendo a ninguém que experimente um baseado. Não recomendo a ninguém que faça qualquer tipo de negócio com traficantes (15). Apenas acho que é chegado o tempo de substituir essa ridícula e caríssima “guerra às drogas” pela palavra paz. Como Fernando Henrique Cardoso propõe. Assim e só assim, ele prova por A+B, com dados e com os resultados de políticas públicas adotadas em outros países, poderemos minimizar a devastação causada pela dependência química sobre os seres humanos. Pela primeira vez na vida, eu senti que estava de acordo com FHC. Fiquei cismando, cismando. Ou ele viajou total, ou fui eu que despiroquei.

Se você não viu, vá ver. O filme bate. Podicrê.

1. ... que tem até nota de rodapé.
2. Fazer a cabeça: gíria de maconheiro antigo para “formar opinião”.
3. Cabeça feita: gíria de maconheiro antigo para “consumidor habitual de maconha”.
4. Dar uma bola: gíria de maconheiro antigo para “fumar maconha”.
5. O soneto foi publicado num livrinho, de nome “Um balde”, que publiquei em conjunto com outros dois sonetistas juvenis: Gomes Moor e Aguinaldo Anselmo.
6. Um tipo que usava bolsa de couro a tiracolo, comprada no Mercado Modelo de Salvador.
7. “Só” queria dizer “Sim”. “Nem” queria dizer “Não”. “Chá” era maconha. “Pó”, cocaína.
8. Os opositores dos “loucos”.
9. Veja Bicho de sete cabeças.
10. Canção que nunca foi composta, e portanto nunca foi gravada, mas que ecoava assim mesmo na cabeça dos meninos.
11. Este, acima de todos os demais, carece de ser apresentado em nota de rodapé: sociólogo que presidiu nossa República. É em homenagem a ele que fiz esse artigo todo com notas de pé de página.
12. Não consta que tenha estudado na USP.
13. Documentário dirigido por Fernando Grostein Andrade, que estreou na semana passada.
14. Digamos assim: demais, cara.
15. Aliás, de trinta anos para cá, o tráfico mudou inteiramente de perfil. Antes, o vendedor de maconha lembrava um pouco um funcionário do jogo do bicho, embora vestido como um rastafári urbano. Hoje, está tudo dominado por organizações poderosas, que contam com armas pesadas, policiais sinistros e políticos corruptos. Descriminalizar a maconha, entre outras vantagens, teria mais essa: cortaria parte do financiamento dessas quadrilhas.

Link original do excelente texto.

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