terça-feira, 10 de julho de 2012

O ERRO DO REI: A fábula da Bela Adormecida e a proibição da maconha (Por Dr. João RL Menezes)

Nos anos 80, Jack Herer utilizou com maestria uma fábula famosa, ‘A Roupa Nova do Rei’ (O Imperador Está Nu), para caracterizar a irracionalidade da proibição da maconha. Vou aqui plagiar Jack, usando também uma fábula famosa para ilustrar a natureza do proibicionismo, uma solução radical com consequências desastrosas, e sua origem no racismo e no medo do outro. Vou expandir uma interpretação comum para a fábula da Bela Adormecida, um conto medieval europeu com múltiplas versões, imortalizado nos tempos modernos pela versão cinematográfica da Disney. Em resumo, a fábula trata de uma princesa posta num sono profundo ao atingir a adolescência devido a uma maldição de uma ‘fada má’ ocorrida na sua primeira infância. A princesa é desperta 100 anos depois pelo beijo de um heroico príncipe. Este despertar em geral é visto como uma alegoria do despertar da sexualidade, da primavera, etc. Mas isto não importa aqui agora. Neste ponto, o importante é ressaltar outro aspecto desta fábula, que o breve resumo deixa de lado. Qual o verdadeiro vilão da história? Não, não é a fada relegada e rancorosa. O vilão desta história é o Rei, um segregacionista medroso e supersticioso.

No dia da apresentação da sua filha tão esperada e desejada, o Rei oferece uma festa e convida certo número de ‘fadas’ para cerimonia (este número varia com a versão). No entanto, uma em particular não é convidada para festa (os motivos desta omissão também variam conforme a versão). Esta omissão talvez tenha sido o primeiro erro do Rei. Um erro de soberba. Em relação à guerra as drogas isto representa a origem da proibição a certas drogas, isto é, a tentativa de exclusão do diferente, do estrangeiro. Todas as drogas atualmente ilícitas eram comumente relacionadas a minorias estrangeiras ou minorias étnicas dentro de uma nação, seja o chinês, o negro, o dervixe ou o mexicano. E as leis proibicionistas foram dirigidas a estas pessoas. O melhor exemplo para nós é a primeira lei anti-canabis do Brasil, editada pela Camara Municipal do Rio de Janeiro em 1830 indicando multa para os boticários e prisão para os escravos e outros usuários.

A fada dita ‘má’ então retalia com uma maldição, prevendo a morte da filha quando esta atingisse os 16 anos. Mas, e se invertermos o ponto de vista deste embate? A resposta da fada à agressão do Rei poderia ser vista mais como uma resposta lúcida de uma classe excluída. Uma advertência honesta da fada, doutra feita considerada ‘má’, para as consequências do racismo do rei, e não uma maldição verdadeira.

Simplesmente significava que se o Rei continuasse com sua política racista, a sua filha iria pagar um preço alto (sustento aqui para voltar mais tarde, que a filha simboliza a juventude do reino). A maldição então consistia em prever que a filha iria se ferir ao tocar o fuso de uma roca aos 16 anos. Qual foi a reação do Rei? Mandou destruir todas as rocas do reino e baniu este equipamento de produzir fios do reino. O paralelo com a politica atual sobre drogas é direto, quase não precisa ser dito: a destruição das rocas é o equivalente a proibição total da canabis.

Na fábula, o resultado também foi algo semelhante ao que acontece atualmente com uma parcela da juventude por causa da proibição radical de apenas certas drogas. Quando a menina atinge seus dezesseis anos ela encontra uma roca perdida, escondida em algum lugar obscuro (também sujeito a variações nas diversas versões da fábula). Sem conhecer nada sobre rocas ela toca no fuso, concretizando a ‘maldição’ (que, algumas das versões explicam, outra fada tinha comutado para um sono profundo). E isto é o paralelo mais importante com a política de proibição da canabis. É obvio que a princesa não teve nenhuma chance ao se confrontar com a ‘Roca’. Com a proibição, uma parcela de nossa juventude fica a mercê dos perigos advindos do uso de drogas pela completa desinformação. Completa com certeza, pois, para que a intenção do Rei tenha êxito, não é necessária apenas uma proibição do uso das rocas, mas um banimento total. Não apenas a destruição dos equipamentos existentes, mas também a proibição de sua construção, de sua idealização e mesmo da manutenção do conhecimento de suas benesses. Esta exclusão total é consequência do casamento da soberba com o medo. Uma exclusão em todos os níveis, especialmente o moral. De fato, a legislação que rege a proibição imposta a certas drogas, e a maconha em particular, é completa e absoluta, restringindo ao máximo todos os aspectos que poderiam ser restritos. Isto é patente em qualquer nível desde uma legislação local a tratados internacionais. No Artigo 49, parágrafo 2, alínea f da Convenção Única de 1961, até a pesquisa com esta planta teria de ser extinta o mais rápido possível até um prazo de 25 anos a partir da assinatura. Não surpreende que a descoberta do princípio ativo da canabis mais adiante, na década de 60, ocorreu em Israel e não nos EUA, o principal proponente do tratado de 1961.

Existiria uma opção mais sensata e inteligente que o Rei poderia ter tido frente a maldição do fuso? Eu pessoalmente faria questão de que minha filha soubesse tudo sobre ‘Rocas’, como elas funcionam, onde estão localizadas, o barulho que produzem e até o cheiro que exalam. Inclusive eu faria de tudo para que ela soubesse como usar e aonde tocar no equipamento. Principalmente não tocar, ou melhor, não querer tocar no fuso. Ambas as opções que se apresentavam frente ao Rei teriam riscos, mas uma exige confiar na filha. Ou seja, se o Rei tivesse mantido as rocas, e ensinado sua filha tudo sobre rocas e fusos, esta nunca teria tocado no fuso (quem toca numa ponta do fuso conhecendo este equipamento?), teria fiado, produzido roupas, usado rocas à vontade sem nunca completar a maldição. Mas totalmente no escuro sobre rocas, fez o que não devia ter feito e concretizou a predição mais óbvia da fada: se o Rei não se consertasse, a juventude pagaria seu preço.

O fato de a simbologia empregar uma máquina de produzir fios reforça ainda mais o paralelo com a guerra as drogas, em especial a canabis. Afinal a canabis é uma importante fonte de fibras vegetais para a produção de fios. Durante anos, foi a principal matriz para a produção de cordas e tecidos, matéria prima para a cordas e velas usadas no período das grandes navegações. E ilustra bem a semelhança entre as consequências da proibição do fuso e da maconha. Apesar de óbvias, as consequências das ações do Rei sobre a população do Reino nunca é destacado nas várias versões da fábula. Mas pense bem qual terá sido a maior consequência em curto prazo da decisão ensandecida do Rei? A indústria de tecelagem do reino deve ter sido destruída e a economia do Reino totalmente desvirtuada pela proibição do uso das rocas. O preço do couro deve ter subido para níveis absurdos, todo um mercado paralelo de rocas deve ter surgido, fios importados e produtos de linho e lã contrabandeados devem ter proliferado e sucateado a economia do Reino. Não me causa espanto que depois de 16 anos todo o Reino tenha caído em um sono profundo de 100 anos.

Mas existe redenção nesta história. Um príncipe corajoso ousou entrar no reino para libertar/acordar a princesa. Faço questão de impor aqui um paralelo um tanto forçado e otimista na esperança de final feliz também para a guerra as drogas. Ao invés de centrar na virilidade do personagem heroico, prefiro idealizar uma virtude em potencial do príncipe em relação aos desafios postos a sua frente. Então para isto prefiro o final da versão da Disney para completar esta alegoria, pela sua fantasia positiva.

Nesta versão uma enorme floresta de espinhos e um grande dragão defendem as consequências da ignorância do Rei. Como o elixir da ignorância é a razão, idealizo o príncipe como uma alegoria da razão. Ou seja, um combate aparentemente desigual, onde a razão é apenas tenaz e a ignorância, um dragão de enormes proporções. Mas aqui reside a esperança, devido a resiliência do príncipe/razão. No final, o dragão/ignorância é derrotado pelo seu próprio peso. Esperança e redenção ao final da fábula: o que desperta o reino de seu longo sono é o beijo da racionalidade na juventude. É importante notar que a razão desperta todo o Reino, não apenas a princesa. A cura para o problema da proibição das drogas não é apenas sobre o usuário, ela abrange toda a sociedade. A sociedade sofre com uma doença, que causa um sono profundo, a irracionalidade da proibição radical de certas drogas. E a cura é uma política de drogas mais racional. Principalmente aquela que confia no ser humano e no seu direito a liberdade.

Texto escrito por Dr. João RL Menezes (PhD pelo Massachusetts General Hospital e Harvard Medical School e Neurocientista do Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ)
FONTE: http://maconhadalata.blogspot.com 


Fotos:
Jodie Emery: Esposa de Marc Emery. Ativista política, empresária, palestrante. Diretora da Cannabis Culture. http://twitter.com/JodieEmery

4 comments:

Maires disse...

Uma boa analogia! Muito bem colocado.

Anônimo disse...

ai sim heim.. um aliado que pensa e tem o conteudo da historia. Obrigado Dr

Anônimo disse...

Lindo texto! Parabéns Dr. João Menezes

Fred Alt disse...

A disney poderia ter sido mais direta, aí ao invés de criar crianças bitoladas, ensinava coisas legais.

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